Desde o ano de 2006, o mês de agosto passou a representar um marco temporal de grandes conquistas para as mulheres brasileiras. Foi nesse mês e ano que a Lei Maria da Penha, voltada ao enfrentamento da violência doméstica e familiar cometida contra a mulher, foi sancionada, passando a vigorar em todos os seus termos no mês de setembro de 2006.
A Lei trouxe no seu bojo mecanismos preventivos e repressivos da violência cotidiana vivenciada pelas mulheres e apresenta como maior avanço no campo preventivo o reconhecimento de que os atos atentatórios à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial, moral de mulheres, no âmbito das relações familiares e no espaço doméstico, configuram condutas reprimíveis pela jurisdição penal e civil.
Nomear, descrever, detalhar os atos que se consubstanciam como violência doméstica e familiar não deram origem ou amplificaram o fenômeno construído socialmente nas bases do patriarcado que até os dias de hoje subjuga mulheres. Ao contrário, dar nome ao fenômeno é o que tem evitado que muitas mulheres ingressem no ciclo de violência, ou é o que as mobiliza a dele sair antes que a situação se agrave ou mesmo se torne irreversível.
Do ponto de vista político, dizer como as relações domésticas e familiares, assim como os espaços domésticos tornaram-se o espaço mais hostil e perigoso para a vida das mulheres, significa que a lei colocou as mulheres no centro da atenção estatal, ratificou a sua condição de sujeito de direitos e não objeto da vontade superior de seus agressores.
O poder legislativo poderia ter estabelecido outra terminologia para denominar os atos atentatórios cometidos contra as mulheres no ambiente doméstico e familiar, mas adotou o termo violência.
Poderia ainda a lei estabelecer outra nomenclatura para as unidades judiciárias onde devem tramitar os processos de violência doméstica e familiar contra a mulher, ou não nomeá-las, como tantas outras leis não o fazem, mas estabeleceu desde o seu artigo primeiro que se denominariam Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher.
Os estados e seus respectivos tribunais criaram referidas unidades judiciárias até então respeitando duas ideias estruturantes e, por isso mesmo, constantes de sua nomenclatura: a quem a lei visa proteger, a mulher; e proteger do que, da violência doméstica e familiar.
O Tribunal de Justiça da Bahia, ao aprovar o requerimento administrativo TJ-COI-2017/09205, para alterar a denominação das Varas de violência doméstica e familiar contra a mulher para Varas da Justiça pela paz em casa, descumpriu não apenas a vontade de quem legislou e sancionou a Lei Maria da Penha, mas desprezou todo o trabalho prévio à aprovação da Lei 11.340/2006, realizado pelo Consórcio de Organizações não governamentais de mulheres e anos de estudos feministas sobre teoria e prática do fenômeno da violência contra a mulher que produziram um documento elogiado além das nossas fronteiras.
A mudança da denominação das Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher para Justiça pela paz em casa, fere de morte o potencial simbólico normativo que a Lei Maria da Penha fez questão de realçar: o protagonismo das mulheres. Assim como outras legislações o fizeram com crianças e adolescentes, idosos, consumidores. Nomear as unidades judiciárias como sendo um espaço de justiça para mulheres que sofreram violência, transmite a elas a confiança de que aquele espaço tantas vezes imponente, difícil de compreender, como é o judiciário, foi criado para elas se protegerem.
Não se erradica, muito menos se enfrenta a violência contra a mulher omitindo sua existência da denominação da unidade judiciária que se destina à apuração dos fatos atentatórios à integridade das mulheres no âmbito doméstico e familiar. Ao contrário, a mudança proposta retrocede aos tempos da invisibilidade desse fenômeno e pior, sob o pálio da paz em casa, traz a todas nós todas o questionamento: que paz é essa? Aquela em favor da qual silenciamos anos a fio as violências sofridas? Aquela que nos retira o protagonismo e coloca tudo antes de nós: filhos, patrimônio, conveniências sociais?
A mudança na denominação das Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher contraria a literalidade e espírito da Lei Maria da Penha, além de nos deixar o alerta: o poder que deveria velar pela aplicação da lei Maria da Penha, ao não respeitar seu sentido, legitima seu descumprimento por quem quer que seja.
Essa paz não nos serve!
Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres – Salvador.