(Via Portal Catarinas)
Silvana Mariano, doutora em sociologia e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina, faz um relato sobre a recente morte de sua irmã, Cidnéia Mariano, que inspirou a criação do Neias – Observatório de Feminicídios Londrina. Vítima de tentativa de feminicídio, Neia faleceu um mês após o lançamento do observatório em sua homenagem. Silvana é também pesquisadora do NEIM/UFBA.
Por Silvana Mariano.
Cidnéia Aparecida Mariano, Néia, minha irmã caçula, com 35 anos de idade, mãe de 4 filhos, foi tirada de nós pelo feminicídio. Seu óbito foi declarado em 30 de maio de 2021, mas sua vida foi ceifada em 8 de abril de 2019. Não foi a primeira e não será a última neste país que tolera cotidianamente a violência contra mulheres. Em uma cultura em que o homem pode tudo, os “machos” têm poder de vida e de morte sobre as mulheres. Rejeitar um homem é sentença de morte para muitas mulheres brasileiras, em pleno século 21.
Em 2019, minha irmã tentava a separação amigavelmente de seu então companheiro, Emerson, com quem ela tinha uma filha, à época com 6 anos de idade. Após aproximadamente duas semanas de negociações, Emerson lhe declarou que tinha encontrado nova casa para morar. Assim, a tensão entre eles se arrefeceu naquele domingo, em 7 de abril, e no início da noite foram juntos encontrar em um bar um amigo em comum.
Na manhã seguinte, Néia não estava em casa. Na volta daquele bar, Emerson a agrediu e a estrangulou. Ela sofreu asfixia e ele avaliou que ela estava morta e a deixou à beira de uma estrada em uma área rural de Londrina. Inesperadamente, uma mulher que logo cedo passava a pé naquela estrada a encontrou ainda com vida. Néia foi resgatada e levada ao hospital e, incrivelmente, sobreviveu, após ficar quase 2 meses internada.
O que veio a partir daí foi sobrevida. Com a asfixia, seu cérebro ficou sem receber oxigênio por tempo desconhecido e foi severamente afetado. Os extensos danos neurológicos deixaram Néia tetraplégica e sem fala. Ela saiu do hospital respirando por traqueostomia e sendo alimentada por sonda. Depois progrediu e teve autonomia para respirar e para deglutir a alimentação recebida via oral.
Néia manteve a força de vontade e a luta pela vida suficientes para assistir ao julgamento e à condenação de seu algoz. Ela não pôde estar presente na sala do Tribunal do Júri, mas, na medida do possível, acompanhou os acontecimentos e seu desfecho.
Emerson, o réu, foi julgado, condenado e sentenciado no dia 4 de fevereiro de 2021. Ele recebeu a pena de reclusão por 23 anos e 10 meses, condenado por feminicídio tentado, por meio cruel e motivo fútil.
No julgamento, a ausência de Néia foi preenchida por uma ação coordenada por feministas ativistas de Londrina, movimento no qual atuo desde os anos 1990. Com a campanha Justiça por Néia, conseguimos mobilizar a opinião pública e chamar atenção da sociedade para o caso da minha irmã, o julgamento de Emerson e a profundidade dos problemas causados pela violência contra mulheres.
Néia demonstrou estar sensibilizada com nosso movimento e expressou contentamento ao saber do resultado do júri e da sentença do juiz. Ela viveu o suficiente para nos acompanhar, a distância, naquele dia.
Desde o final de fevereiro, a disposição de Néia estava em declínio, a atrofia piorando e a perda de peso se agravando. Mobilizamos os recursos médicos e sociais necessários para melhorar sua assistência. Novamente com apoio de feministas, fizemos nova campanha de arrecadação de recursos financeiros, ganhamos uma cama hospitalar totalmente adaptada, provemos novos itens para seu cotidiano, melhoramos o espaço físico e outras providências.
Recentemente, o quadro se agravou. Néia não mais aceitava alimentação e, nos últimos dias, ela estava recusando até o líquido. Tentamos melhorar seu ânimo, sem sucesso. Foi doído demais acompanhar o processo no qual minha irmã foi se definhando. Em 30 de maio último, Néia descansou. Se foi e deixou uma enorme saudade e uma imensurável revolta.
Néia, como muitas outras mulheres brasileiras, perdeu a vida quando quis se separar. “Se não é minha, não será de mais ninguém”! Este valor, que aciona a conduta feminicida, deve ser reprovado e extinto na nossa sociedade.
A morte da minha irmã não foi uma fatalidade! É feminicídio! E feminicídio é produto das nossas relações sociais machistas, misóginas e patriarcais. São valores e práticas cotidianas que alimentamos e que produzem homens que pensam ser proprietários das mulheres e mulheres que ficam subjugadas ao poder masculino. Esses homens encontram guarida entre familiares, nos grupos de amigos e até nas instituições patriarcais.
Até quando? Basta! Queremos viver! Precisamos, mulheres e homens, reprovar socialmente as condutas machistas, desde a sua menor manifestação, inclusive as verbais. O crime de feminicídio não é o primeiro ato de violência que o homem pratica contra sua namorada, esposa ou ex. Geralmente ocorre um quadro de violência crescente.
Respostas do Estado à violência contra as mulheres
Conforme os acordos e estândares internacionais de direitos humanos, incluindo a Convenção de Belém do Pará, os Estados têm do dever de prevenir, punir e reparar a violência contra as mulheres. O que eu conhecia academicamente, vivenciei agora na prática e vi de perto o quão fictício é esse marco e a urgência de caminharmos na direção de concretizá-lo. Devemos encarar isso não como ficção, mas como utopia. O horizonte que queremos alcançar.
Vivendo o problema “por dentro”, pude perceber melhor a ineficácia das respostas do Estado em termos de prevenção, as barreiras para as repostas em termos de acesso à justiça e a inexistência de respostas em termos de reparação de danos. Operadores de justiça, dentro e fora do Estado, nem ao menos encaram a reparação de danos como uma pauta pertinente.
É urgente avançarmos, no Brasil, na direção já delineada nos documentos emitidos pelos organismos internacionais de direitos humanos e direitos das mulheres.
Assistência precária no serviço público
Durante esse período de sobrevida da Néia, foram muitos horrores e quase nenhum suporte do poder público. Inexiste articulação da rede de serviços necessários para uma sobrevivente de feminicídio naquelas condições. Foram, predominantemente, os recursos pessoais de familiares, amigos e pessoas sensibilizadas com o caso que garantiram a provisão dos cuidados e tratamentos necessários à Néia. Um problema criado e cultivado estruturalmente por nossa sociedade, torna-se tão somente obrigação pessoal da família para lidar com os danos.
Com profissionais especializados particulares, conseguimos os importantes avanços para as retiradas da traqueostomia e da sonda. Néia adquiriu autonomia para respirar e deglutir. Pôde, assim, receber alimentação via oral. A fisioterapia, no entanto, foi a maior barreira. Jamais conseguimos acessar um serviço especializado para o quadro da minha irmã. Foram inúmeras tentativas por iniciativas pessoais. Nenhum encaminhamento realizado formalmente por iniciativa dos serviços públicos. E fracassamos em todas as nossas tentativas pessoais.
Da parte do SUS, até para obter as fraldas geriátricas foi por meio de ação judicial. E, perante o SUS, as fraldas resumiam as necessidades da Néia.
Enquanto os profissionais de saúde pública foram, na maior parte do tempo, expectadores, apenas esperando o tempo passar, nós tínhamos a consciência de que o tempo era inimigo da qualidade de vida da Néia e buscamos por todos os meios possíveis melhorar a assistência prestada a ela.
Se experimentamos o descaso do Estado, por outro lado tivemos o alento de contar com a generosidade inestimável de amigas, amigos e pessoas desconhecidas que conosco se empenharam para o melhor bem-estar possível para Néia.
A pena ao algoz
Emerson, o algoz de minha irmã, foi condenado por feminicídio tentado em fevereiro de 2021. Néia nos deixou em maio de 2021. No momento, o processo encontra-se em fase de recurso. Enquanto a defesa pede redução da pena, Néia deixou de ser sobrevivente. Nossa luta agora é que o processo, ainda em trâmite, seja convertido de feminicídio tentado para feminicídio consumado.
Os danos sociais
O feminicídio não apenas ceifou a vida da minha irmã. As vítimas indiretas são muitas e os danos são profundos. Néia era mãe de 4 filhos (1 rapaz e 3 meninas), 2 crianças e 2 adolescentes, que foram separados com a extinção daquele núcleo familiar. Seus 4 filhos encaram agora uma vida radicalmente modificada pela perda da mãe, de seus cuidados e de seus afetos.
A luta coletiva
Da luta por Justiça por Néia, nasceu uma organização feminista que fundou o Neias – Observatório de Feminicídios Londrina. Nossa intenção foi dar continuidade às articulações e movimentações que criamos no caso da Néia e, a partir das nossas ações, contribuir para maior visibilidade às vítimas de feminicídio tentado e feminicídio consumado em Londrina e região. Ao produzir visibilidade, esperamos criar sensibilização da sociedade para o problema da violência contra mulheres e contribuir para o aperfeiçoamento das respostas do Estado nas três linhas de ação, prevenção, punição e reparação.
Como protegemos as mulheres? Somente construindo outra sociedade e outras instituições, e, portanto, outros indivíduos para uma sociedade mais justa.
“A nossa luta é todo dia, contra o machismo, racismo e homofobia”.
Néia, presente!
*Silvana Mariano é irmã de Cidnéia Mariano, doutora em sociologia e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina.